Violência e prática de encarceramento serão debatidas em campanha dos direitos humanos do CFP
O tema “O que foi feito para excluir não pode incluir” aborda a exclusão nas esferas do sistema prisional, socioeducativos e abrigos
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Instituições que perpetuam a prática da exclusão social e da violência são objeto de uma campanha nacional organizada pela Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia, em conjunto com as Comissões de Direitos Humanos dos Conselhos Regionais. A Psicologia inicia uma jornada para provocar a adoção de medidas e programas voltados para os Direitos Humanos e que questionem a idéia do encarceramento, um sistema que, em vez de recuperar o indivíduo, rouba-lhe a identidade. A violência crescente nas Febens, nas unidades do sistema prisional e mesmo em alguns abrigos para idosos ou pessoas portadoras de deficiência comprova a falência das práticas de privação de liberdade vigentes.
No último dia 10 de novembro, foi lançada essa que é a V Campanha Nacional de Direitos Humanos - “O que é feito para excluir não pode incluir. Pelo fim da violência nas práticas de privação de liberdade”, permanecendo durante todo o ano de 2006. Os psicólogos brasileiros pretendem estabelecer uma rede de parcerias com pessoas e entidades que tenham o compromisso com a defesa da vida, da dignidade humana e da ampla defesa para debater a questão junto aos organismos governamentais e da sociedade civil. Ao longo dos próximos meses, serão organizados seminários e encontros em todo o país para denunciar, discutir a matéria e propor alternativas de reinserção da população reclusa.
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Para a coordenadora da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia, Esther Arantes, constatou-se ao longo dos últimos anos conquistas importantes em relação à luta antimanicomial. O mesmo não se poderia dizer em relação às lutas para modificação dos sistemas prisional e socioeducativo. Tanto que já está sendo organizada uma primeira inspeção às unidades de internação do sistema socioeducativo, simultaneamente em todo o Brasil, em parceria com as Comissões de Direitos Humanos e da Criança e do Adolescente, da Ordem dos Advogados do Brasil, além de outros parceiros governamentais e não-governamentais.
Esther Arantes explica que todas as caravanas serão realizadas em nível nacional e terão como resultado relatórios que serão amplamente debatidos pela categoria, divulgados pela imprensa e entregues às autoridades. Segundo ela, a violência crescente constitui-se em enorme desafio. “Trata-se de se contrapor às idéias amplamente difundidas de que bandido bom é bandido morto ou que direitos humanos serve apenas para defender bandidos”, diz.
Os psicólogos brasileiros pretendem estabelecer uma rede de parcerias com pessoas e entidades que tenham o compromisso com a defesa da vida e da dignidade humana para debater a questão. Ao longo do ano serão organizados seminários e encontros em todo o país para debater a matéria e propor alternativas à luz dos resultados das caravanas ou inspeções – que não se limitarão ao sistema socioeducativo.
A coordenadora da Comissão de Direitos Humanos do CRP SP, Marilene Proença, esclarece que o tema foi escolhido a partir de um debate do qual participaram todas as Comissões de Direitos Humanos do Sistema Conselhos. A avaliação nacional foi a de que a questão do encarceramento é um problema comum em vários Estados e em relação ao qual os Conselhos Regionais têm sido acionados para discutir, defender ou apurar denúncias, em particular no sistema prisional e em instituições em que deveriam cumprir as medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente.
“Foi feito um levantamento geral de como a violência está se materializando na sociedade, principalmente nas instituições de privação da liberdade. Decidimos por uma campanha que fale do encarceramento, que pense a questão da violência nos espaços, onde as pessoas estão privadas de alguma forma de liberdade e onde há menos recursos para se lutar contra as arbitrariedades do que nos outros espaços sociais”, explica Marilene.
| Ela lembra que, historicamente, a resposta da sociedade a determinadas situações, que poderiam ser consideradas como “desvios” ou “atos anti-sociais”, centra-se em práticas de exclusão do meio social, impossibilitando que pessoas que viveram a experiência do encarceramento tenham condições de reinserção social. Segundo ela, vários estudiosos, como Foucault, Goffman e Basaglia, autores de referência em Psicologia, mostram que instituições como manicômios, prisões e casas de custódia foram criadas com a finalidade de segregar indivíduos tidos como anormais e periculosos, deixando de enfrentar os reais motivos que levaram as pessoas a cometer atos infracionais ou de serem portadoras de sofrimento psíquico.
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Declaração Universal de Direitos Humanos
No dia 10 de dezembro de 1948, a Assembléia Geral da ONU aprovou a “Declaração Universal de Direitos Humanos”, tornando-se um marco na luta pela dignidade humana, liberdade, justiça e paz. Os princípios universais do documento são hoje uma meta perseguida pelos movimentos e entidades dos direitos humanos, entre eles a da Psicologia, para divulgar os 30 artigos que integram a Declaração. O documento é muitas vezes citado, mas pouco conhecido, e muito menos aplicado pelo Poder Público. 10 de dezembro é uma data que sempre dever ser lembrada e comemorada para levar a todos esse ideal. |
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“Essas instituições são criações sociais e apesar de todas as discussões dos últimos anos, pouco se avançou no sentido de implementar políticas sociais que venham a enfrentar o sofrimento psíquico, o delito e o ato infracional. E isso acontece apesar de termos avançado do ponto de vista da legislação. O Estatuto da Criança e do Adolescente é um bom exemplo de lei avançada e pouco ou incorretamente aplicada”, diz.
O conservadorismo da sociedade e das práticas sociais, segundo Marilene Proença, está expresso com intensidade no Estado de São Paulo na própria existência da Fundação Estadual do Bem Estar do Menor - uma instituição que, ainda, carrega princípios do antigo Código de Menores, revogado há 15 anos. Para ela, a questão está diretamente ligada ao preconceito que impera em relação a jovens oriundos das classes populares. “A maioria dos adolescentes, encarcerados nesse sistema, é pobre, sem direito ao acesso a uma escola de qualidade, a uma habitação digna e à cultura e ao lazer”, observa. Marilene Proença destaca que é fundamental compor uma frente ampla de luta com movimentos e grupos sociais organizados que pensem da mesma forma e que venham a realizar ações que modifiquem as práticas sociais junto à criança e ao adolescente.
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Entidades prestigiam lançamento
No lançamento da V Campanha Nacional de Direitos Humanos, estiveram presentes a Associação de Mães e Amigos da Criança e do Adolescente em Risco (AMAR), Casa do Psicólogo, Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedeca) de Sapopemba, Comissão de Direitos Humanos da OAB, Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, Conselho Regional de Serviço Social (CRESS) da 9ª Região, Fórum Estadual da Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes, Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança, Fundação Projeto Travessia, Instituto Latino-Americano das Nações Unidas (Ilanud), Instituto de Psicologia da USP, Projeto Meninos e Meninos de Rua de Guarulhos, Sindicato dos Psicólogos do Estado de São Paulo e Sintraemfa. As edições anteriores também abordaram, só que de maneira menos direta, a temática do encarceramento. A primeira campanha, “O pior do pior”, por exemplo, tratou dos manicômios judiciários. A segunda denunciou o extermínio de crianças e adolescentes e o sistema repressivo: “Brincadeira e caixão”. As demais campanhas falaram do preconceito racial e da educação inclusiva. |
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Esther Arantes do Conselho Federal conta que todas as autoridades presentes no lançamento nacional da campanha, em Brasília, destacaram essa dificuldade em relação à sociedade. “Não é uma campanha simples. A resistência à questão de reforma no sistema de privação de liberdade é maior que a do sistema psiquiátrico. A sociedade está tão revoltada com a violência que admite certas práticas. Mas a campanha é absolutamente necessária”, afirma.
O debate sobre a Febem deu início à campanha em São Paulo. Na ocasião, a presidente do CRP SP, Maria da Graça Marchina Gonçalves, afirmou que o tema “encarceramento” não é uma questão simples. “Ele é de difícil enfrentamento, mas fundamental para que tenhamos uma Psicologia que reflita e produza conhecimento numa área, ainda, pouco explorada. Discutir essa temática nos obriga a refletir, organizadamente, um exercício importante, porque muda a maneira de os psicólogos entenderem um assunto complexo, além de contribuir para que a sociedade perceba essas questões de outra forma”, diz ela. “A nossa perspectiva com essa campanha é pensar outro tipo de sociedade, que inclua todos indivíduos: os doentes, os portadores de sofrimento psíquico, os portadores de qualquer diferença, os que transgrediram, que violaram as regras, aqueles que envelheceram, todos que não conseguem manter uma convivência cotidiana como a maioria consegue”, explicou.
A campanha em São Paulo será debatida em tópicos. O primeiro é a questão da Febem. “A maioria da população carcerária em São Paulo é de jovens entre 18 e 24 anos. Que sociedade é essa que não pára para pensar no que está fazendo com o futuro de tantos jovens nessa situação?”, questiona. Maria da Graça ressaltou que é preciso fazer um balanço e pensar em ações que coloquem a Psicologia e seus parceiros na frente de luta.
O promotor de justiça da Infância e da Juventude, Wilson Tafner, que atua na fiscalização da Febem, levanta alguns questionamentos, nascidos de sua experiência de mais de oito anos na instituição, que levam a uma reflexão sobre o que significa o encarceramento para os adolescentes e para a sociedade. Os internos, segundo o promotor, passam por uma verdadeira “escola do crime” ao serem submetidos a práticas como a tortura contumaz e transferência para presídios.
“O encarceramento, na prática, nos dias de hoje, acaba sendo a forma mais cara de tornar as pessoas piores. E para o adolescente, fica muito clara essa contradição”
Ariel de Castro Alves
Testemunha ocular de crimes e violações aos direitos humanos contra os internos da Febem, ele observa que São Paulo vive uma antítese, “quase uma esquizofrenia”, na área. “Como um Estado rico consegue construir vários presídios para mais de 800 vagas no interior e não consegue implantar uma unidade socioeducativa para 40 adolescentes?”, questiona. O promotor ressalta que a vivência do encarceramento, do acúmulo e da tortura como forma de manutenção da ordem levou a uma certa complacência da sociedade com esses tipos de prática. Ele se questiona até mesmo sobre a real existência de uma sociedade civil organizada que possa enfrentar, de forma concreta e articulada, a questão.
O coordenador estadual do Movimento Nacional de Direitos Humanos, assessor jurídico da Fundação Projeto Travessia e membro da Comissão da Criança e do Adolescente da OAB, Ariel de Castro Alves, ressalta que a sociedade, muitas vezes, deixa-se levar pelo lado emocional da questão - influenciada por ditados como “dente por dente, olho por olho” -, e prefere retirar as pessoas do convívio social. As conseqüências e os efeitos do encarceramento, segundo ele, são desconhecidos pela sociedade, que “vai pagar a conta”.
Ariel de Castro Alves diz que o encarceramento em si já traz embutida uma grande contradição: como ensinar alguém a viver em sociedade privando-o do contato social? Ele defende que o encarceramento deve ocorrer só em casos excepcionais, inevitáveis, quando a conduta do adolescente ou adulto possa comprometer a própria sociedade. Os efeitos para os jovens, segundo ele, são deletérios, negativos e até mesmo perversos. “O encarceramento, na prática, nos dias de hoje, acaba sendo a forma mais cara de tornar as pessoas piores. E para o adolescente, fica muito clara essa contradição”, acrescenta. Como saída, ele elenca as medidas socioeducativas, no caso do adolescente, ou as penas alternativas, no caso de adultos.
O debate está apenas no início, mas uma frente de luta composta pelos setores defensores da liberdade e da diversidade começa a se delinear, agregar e se fortalecer para denunciar e agir pelo fim da violência nas práticas de privação de liberdade. A psicóloga Maria Izabel do Nascimento Marques, membro da Comissão de Direitos Humanos do CRP SP e coordenadora da Subsede de Campinas, acrescentou que as parcerias são fundamentais para o sucesso da campanha. “Que essa campanha não seja só dos psicólogos, mas de todos os parceiros comprometidos com os Direitos Humanos”, espera.
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